
A noite espalhada no alcatrão refletia o sentimento que lhe consumia o peito. Passava pouco da uma da manhã. O prédio da frente espreitava por entre as cortinas do quarto. Parecia sussurrar-lhe algo, apesar do silêncio desmedido. As janelas escuras, sem estores, afiguravam olhos encovados atentos à vida que, naquele momento, era nula. Pareceu-lhe ver qualquer coisa numa das janelas do primeiro andar. Talvez reflexo de algum farol de um carro que apareceria em breve, mas não. A estrada não se mexeu. Impossível, pensou. A viúva morrera. Arregalou mais os olhos, fixou-os e susteve a respiração, como se ajudasse a apurar a visão. Nada. A casa acusava o gasto dos anos e desde o falecimento da proprietária que se tornara ainda mais abatida. Decidiu correr as cortinas e deitar-se. Ouviu um ruído no andar de baixo. Teria deixado alguma janela aberta? Quis verificar e desceu. Para seu espanto, a porta da rua estava entreaberta e balançava suavemente com o vento. O ciciar das árvores ecoava pelo hall. Arrepiou-se e sentiu o tórax acelerado. Espreitou a rua, não viu nada. Trancou a porta. Tentou recordar se quando voltara de despejar o lixo a tinha fechado; tinha quase a certeza de que sim. Um novo ruído, vindo da cozinha, congelou-a. Sentia o coração a bater-lhe no queixo, enquanto pensava o que fazer. Decidiu, a custo, avançar lentamente. O ranger das tábuas de madeira obrigavam-na a abrandar, ainda mais. O batimento cardíaco parecia o pulsar das paredes. Estancou na entrada. A luz ténue vinda da janela das traseiras iluminava apenas um feixe da bancada de pedra. Todo o resto dormia. As panelas e utensílios arrumados e alinhados sobre o lava-loiça estavam iguais ao costume. Mas algo diferente, naquele quadro, chamou-lhe a atenção. Uma mancha escura pincelada no chão de azulejo. Fremia sobremodo, num êxtase nervoso que a impedia de respirar. Acendeu a luz, e, horrorizada, percebeu que era um rasto de sangue, ainda fresco. «Quem está aí?», atreveu-se, tremulamente, a perguntar. Silêncio. Os rasgos iam na direção da despensa…
Não sabia se conseguia avançar, os nervos tolhiam-lhe os movimentos. Perguntou, de novo, «Quem está aí?». Ouviu-se um som abafado, vindo da despensa. Decidiu deslizar até à bancada e retirar uma faca do suporte. Logo que a agarrou, ouviu um estrondo que a fez saltar e estancar. De faca em riste, foi tentando perceber o que era. A porta da despensa abriu-se, lentamente, estava tudo escuro e não se via nada, nem ninguém. A cozinha inteira parecia latejar ao ritmo do cérebro. Pressentia a presença de outra vida, mas não conseguia ver vivalma. Esperou, sem sair do lugar. Poucos segundos depois, surgiu um gato preto. Grande, de olhos amarelos, fitou-a. Lambeu os bigodes, e quando ela se começou a aproximar, fugiu de um salto e não o voltou a sentir. Acendeu a luz do pequeno compartimento onde culminava a esteira de sangue. Horrorizada, viu aquilo que aparentava ter sido uma ratazana. Estava desfeita. Levou uma mão à boca, para suster o vómito. Correu para a torneira, molhou o rosto e bebeu água. Agarrou num dos seus comprimidos e tomou. A seguir, encheu um copo com whisky puro malte, duas pedras de gelo, e foi bebendo, enquanto chamava pelo gato. Percorreu todos os cómodos e nem sinal do bicho. Cansada, e já sob o efeito da medicação, deitou-se no sofá. Adormeceu com a habitual companhia retangular.
O dia amanheceu amuado e Fedra com uma dor de cabeça maior do que as habituais. Acercou-se da janela, desviou o cortinado e examinou a rua. Um casal passeava do outro lado do passeio, com uma criança pela mão. A menina pareceu ter-se sentido observada e, virando a cabeça, olhou para ela. Automaticamente, Fedra deu um salto para trás, largando a cortina. Sabia que era feio espreitar os outros. O psicólogo insistia em que ela deixasse de ficar obcecada com o que se passava no exterior, que se concentrasse no seu tratamento e em tentar ultrapassar os seus medos e fobias. Não saía de casa há mais de um ano. Não conseguia, nem via necessidade disso. Ali, estava protegida. As cartas eram colocadas no correio, as compras do supermercado e da farmácia eram entregues ao domicílio, o lixo era colocado rapidamente no caixote à porta de casa e, de resto, não precisava de mais nada. As consultas eram feitas na sala de estar. Por vezes, nem o robe tirava. Lia, via televisão, ouvia rádio, mas o seu maior interesse era ver o que se passava para lá dos vidros.
Em tempos, o prédio da frente tinha criado nela essa atração. O filho da viúva, depois da morte do pai, mudara-se para a casa da mãe para a ajudar. Era um homem esbelto, educado e, aparentemente, muito dedicado à progenitora. Preparava-lhe sempre um chá a meio da tarde e presenteava-a com uns bolinhos frescos, que trazia de manhã quando ia buscar o pão, ou uma fatia de bolo caseiro que lha dava aos fins de semana. A curiosidade foi aumentando à medida que os foi observando mais, chegando a comprar uns binóculos, que mandou vir pela internet. A partir dessa altura, passou a perceber que o filho deitava umas gotas de qualquer coisa no chá, antes de o entregar à mãe. Inicialmente, deduziu que se tratava de um remédio. Ao longo de cinco meses, a mulher foi definhando. Ganhou uma cor pálida, que passou a azulada.
Quantas vezes ela quis tocar à porta da senhora, depois de ver que o filho saía para o trabalho, mas não conseguiu. Faltava-lhe a coragem para por um pé no passeio. Ao fim de quase um ano, a viúva parecia um esqueleto e faleceu. Uma senhora de idade, é certo, mas ativa, e, aparentemente, de boa saúde, até o filho começar a cuidar da sua alimentação. Na sua cabeça, o que acontecera era óbvio.
Naquela tarde, confirmou-se o que esperava. Uma tabuleta com a inscrição «Vende-se» foi colocada na janela da sala de estar.
Viu o filho, juntamente com outro homem, a entrarem. Aparentava ser alguém de uma imobiliária. O filho devia precisar da herança e do dinheiro da mãe. Não pôde esperar que ela falecesse naturalmente.
Enquanto colocava a placa contra o vidro, o proprietário olhou para ela e acenou a cabeça como se a cumprimentasse. Ficou horrorizada, pois achava que sempre tinha passado despercebida. Nunca acendia as luzes e ficava numa cadeira, razoavelmente afastada da janela.
Passados uns quinze minutos os dois homens saíram e cada um entrou no seu carro. O prédio voltou a adormecer. Ela não. A imagem do filho a olhar para ela, tinha-a perturbado. Desceu à cozinha para comer qualquer coisa e tomar a medicação. Deparou-se com o rastilho seco da ratazana e um cheiro nauseabundo. Nunca mais se lembrara. Colocou um pano à volta do nariz e da boca, calçou umas luvas de borracha e limpou tudo. Colocou os restos do animal num saco fechado, abriu a porta da rua e foi rapidamente até ao caixote. Voltou e enfiou-se na banheira; sentia-se imunda. Enquanto bebia o seu líquido preferido, olhava para a espuma que a rodeava. Parecia criar formas assustadoras. Caras deformadas que a contemplavam e pareciam rir. Riam-se dela, às gargalhadas, cada vez mais alto, até se calarem, repentinamente, com um estrondo. Parecia vir, novamente, da cozinha. Despejou a água, lavou-se e limpou-se apressadamente. De robe e chinelos, desceu, cautelosamente, a escada de madeira, perguntando «Está aí alguém?». Não obtendo resposta, avançou cautelosamente até à cozinha. Não queria acreditar: o mesmo cenário. Um trilho de sangue que desaparecia na despensa.
– Outra vez tu, gato? – perguntou, com a voz a tremer.
Agarrou no puxador, devagar, e, enquanto abria lentamente a porta, espreitava para o interior.
– (gritos)
O gato preto saltou-lhe em cima, com o susto desequilibrou-se e caiu para trás, em cima do sangue. Voltou a gritar mais, enquanto olhava para as mãos ensanguentadas. O bicho passou por ela a correr. Novamente, outra ratazana estraçalhada jazia no chão. Desta vez, decidiu limpar logo tudo e voltar a enfiar-se na banheira; o mais rápido possível. Não deu por o gato sair, nem sabia sequer como tinha entrado. Decidiu lavar-se, enquanto pensava no assunto. Desta vez, tomou um duche sempre com água corrente e sem espuma. Terminou a bebida assim que terminou o banho. A única hipótese era o gato entrar e sair quando ela ia despejar o lixo ou, sem querer, não fechava bem a porta e ele aproveitava para se esgueirar. Deitou-se extenuada no sofá a ver televisão. Já deviam ser umas nove da noite. Adormeceu. A garrafa abraçava-a.
Acordou às três da manhã, suada, com o coração a bater fora do peito. O pesadelo de sempre. Havia perto de uma semana que não o tinha. Tomou dois dos seus comprimidos com uns goles de whisky. Foi espreitar a rua enquanto tentava acalmar-se e respirar fundo. A tabuleta que dizia «Vende-se» estava ao contrário, de pernas para o ar. Esfregou os olhos e olhou melhor. Foi buscar os binóculos e confirmou o que via. Como é que isso tinha acontecido? Teria o dono voltado a casa e mudado? Com que intenção? Não fazia sentido. E se fosse o gato? Mas, como é que ele entrava? E como conseguiria colocar a placa tão direita? Se lhe desse uma sapatada, ela teria caído e não se invertido. Todas estas dúvidas circundavam a mente inquieta de Fedra. Precisava de água. Desceu as escadas, agarrada ao corrimão, lentamente, conduziu-se até à cozinha e encostou-se à bancada, enquanto enchia um copo. Bebeu-o sofregamente, apagou a luz e, enquanto se dirigia para as escadas, pareceu-lhe ver dois olhos amarelos a fitarem-na no corredor. Desapareceram em seguida. Subiu e afundou-se no sofá. Havia tempo que preferia não sentir a cama. Desde aquele dia que se foi desabituando. Bebeu até voltar a adormecer.
Dia de consulta. O médico ligou-lhe antes a confirmar. Fedra arrumava sempre as garrafas e copos que se iam espalhando pela pequena mesa de centro, ao longo da semana. Não sabia bem porquê, afinal acabava sempre por confessar-lhe o delito. Ele já a avisara, várias vezes, sobre o efeito indesejado das misturas com o álcool. Além de que, assim, ele não conseguia avaliar o real efeito do tratamento. Mais uma vez, pediu-lhe para não sabotar a terapêutica e reviveram, novamente, aquele dia. A intenção era resolver o passado para poder viver o presente e planear o futuro. O médico dizia-lhe que assim não a conseguia ajudar, ela tinha de colaborar; não ingerir bebidas alcoólicas era parte importante dessa cooperação. Ela dizia-lhe que sim. A seguir, trabalhavam a questão de sair à rua. Depois de ele ir, ficava a promessa de mudança.
Terminada a sopa e a fruta do jantar, Fedra sentou-se na cadeira indiscreta. Os binóculos procuraram-na e juntos decidiram passar algum tempo. Durante os primeiros dez minutos, nada aconteceu, apenas alguns carros passavam. Sem saber porquê, começou a sentir-se agitada, inquieta, a suar, a tremer. Tomou mais um dos comprimidos da noite. As memórias começaram a assolá-la. Queria dissipá-las, não conseguia. O ar começou a sufocá-la e a apertar-lhe os pulmões. Sentia as lágrimas rolarem-lhe pela face e a desaguarem no peito, que arfava veloz. Procurou debaixo do sofá, encontrou-a e levou-a à boca. O líquido quente alargou-lhe a garganta, desentupiu-lhe os brônquios e começou a respirar melhor. Deu mais três goladas. Sentou-se, sentiu as imagens a esfumarem-se e o corpo a acalmar-se. Já não largou mais a garrafa de malte, até terminar. Adormeceu por umas horas e acordou com a garganta seca. A madrugada já ia avançada e ela decidiu voltar a visitar a noite. A lua cheia iluminava completamente a Roosevelt Street que, apesar da claridade, parecia dormir. Para seu espanto, viu o gato preto à janela onde a viúva costumava apanhar um pouco de sol. Estava a lamber-se. O coração disparou e fê-la gelar. Sentiu um arrepio a invadir-lhe a coluna e a espalhar-se por todo o corpo. Começou de novo a tremer; procurou a garrafa, estava vazia. Afastou-se da janela, largou os binóculos e perscrutou todos os móveis da sala. Nem uma pinga de álcool. Desceu apoiada, com a respiração cada vez mais despachada na necessidade urgente de chegar à cozinha. Tinha quase a certeza de que haveria alguma garrafa de whisky, vodka, gin, vinho, licor ou qualquer outra coisa que a ajudasse. Naquele momento, era indiferente. Depois de revistar, sem sucesso, todos os armários superiores e inferiores, na bancada, por trás das panelas e junto ao caixote do lixo, restava-lhe apenas a despensa. O medo chegou na forma de pequenos sismos, sentidos por todo o corpo, de tal maneira que parecia que toda a casa estava a sofrer um tremor de terra. O abalo era tão forte, que mal conseguia andar. Teve de se agarrar à bancada central de mármore, para, com pequenos passos, alcançar a maçaneta da porta. Pareceu-lhe mais gelada do que o normal; passou as mãos na testa e no rosto, limpando pequenas gotas de suor. Respirou fundo e colocou novamente a mão no puxador, ligou o interruptor e rodou o globo metálico. A porta rangeu, como se estivesse a queixar-se. Lá dentro, Leonard olhava-a, com o gato ao colo. O coração estalou e ela caiu desmaiada.

O cheiro a amoníaco pairava no ar. Aos poucos, foi abrindo os olhos e apercebendo-se do branco imaculado em torno. Pensou se seria ali o céu. Um vulto foi ganhando forma e cor. Um médico de bata e touca verde olhava, ora para ela, ora para um monitor ao seu lado. Saíam-lhe fios dos braços. Sentia-se fraca e zonza.
– Não se preocupe, agora está bem e supervisionada. Não precisa de ter medo, vamos cuidar bem de si.
– Pode dizer-me o que aconteceu? – balbuciou.
– A senhora desmaiou e, por sorte, o seu médico, como não lhe atendeu o telefone, chamou logo os bombeiros e entraram em sua casa. Encontraram-na caída no chão da cozinha. A senhora sofreu um trauma muito grande e esteve em coma um mês.
– Um mês?
– Sensivelmente, sim. Nesse ínterim, foi-lhe feita uma desintoxicação e administrado um tratamento para pessoas que sofreram choques traumáticos muito profundos e que não conseguem ultrapassá-los de outra maneira.
– Quando é que posso falar com o Dr. Jones?
– Mais logo. Vamos contactá-lo e informá-lo que já acordou.
Quando o Dr. Jones chegou, Fedra tinha acabado de acordar. Ainda muito cansada, e sedada, dormia muito.
– Boa tarde, Fedra, como se sente? – perguntou, carinhosamente, enquanto se aproximava da cama.
– Estranhamente calma. Há muito tempo que não me sentia assim.
– É ótimo saber isso. O seu cérebro e o seu corpo já não aguentavam mais a pressão, nem o mal que lhes fazia continuamente.
– Pois, mas como sabe era muito difícil ficar sem beber. Começava a ouvir vozes, a tremer, a ver coisas, a reviver aquele dia. Os medicamentos não resolviam tudo o que o whisky conseguia.
– Eu sei, mas era uma questão de tempo. Não se pode tapar o sol com a peneira indefinidamente.
– Eu vi-o dentro da despensa com o Thunder ao colo. Estava parado a olhar para mim.
– O cérebro prega-nos muitas partidas. A Fedra sabe bem que o que viu é uma imagem projetada pela sua mente.
– Mas parecia tão real, por isso o meu coração não aguentou e desmaiei.
– O seu coração não aguentou a quantidade de barbitúricos que ingeriu, porque, para além dos que lhe recomendei, a Fedra tomou muitos mais, juntamente com álcool. Eu temia que isto acontecesse. Parecia que estava a adivinhar e, por isso, liguei-lhe. Na última consulta, pareceu-me bastante mais perturbada, quando deveria estar a acontecer o inverso. Felizmente, chegámos a tempo de a poder salvar e recuperar, com esta desintoxicação e o coma.
– Mas acha que tudo o que vi e senti nestes últimos meses é apenas fruto da minha imaginação?
– Não digo que seja tudo, tudo, mas…
– O gato que aparecia com as ratazanas mortas?
– Creio que não, Fedra – disse, compassivamente.
– E o filho da viúva, que tenho quase a certeza que a envenenou? A vizinha da frente morreu mesmo, certo?
– Sim, certo, mas achar que o filho a envenenou, não me parece. Devia deixar isso de lado. A velhota já morreu, não há muito a fazer.
– Pois, tem razão, Dr. Jones, mas eu tenho quase a certeza do que ele lhe fez. Eu vi a mudança no aspeto e na saúde dela, e isso só aconteceu quando ele lhe começou a pôr umas gotas no chá, todos os dias.
– A Fedra acha, mas não tem a certeza. As gotas podiam ser um remédio que ela precisava de tomar.
– Ele queria a casa para a vender e receber o dinheiro rapidamente.
– Não sabemos – continuou, pacientemente, o médico.
– Se eu falasse com a Polícia, eles podiam investigar a morte dela; podia ser que encontrassem o veneno…
– Fedra, agora preocupe-se consigo, em recuperar e sair daqui. Devia vender a sua casa e mudar-se para outro lugar. Pense nessa possibilidade, fazia-lhe bem. Além disso, não tem provas, e, mesmo que fosse testemunhar, dizendo o que viu, seria sempre desacreditada, em tribunal, devido à sua condição psicológica e à medicação que toma.
– Pois é, infelizmente tem razão. Obrigada e desculpe por todo o trabalho que lhe dou.
– Ora essa, estou aqui para a ajudar. Vamos fazer algumas sessões de terapia aqui no hospital, antes de ter alta, para nos certificarmos de que está realmente bem.
Os dias foram passando e Fedra começou a comer, a fazer alguns exercícios e caminhadas, em redor dos jardins do hospital psiquiátrico, sempre acompanhada por uma enfermeira. Começou a ter sessões de terapia de grupo, além das individuais com o Dr. Jones e um psiquiatra.
Foi aceitando a dor da perda do marido e do Thunder, e deixando de se culpabilizar. Fez algumas regressões, através de hipnose, e conseguiu despedir-se de Leonard. Era importante perdoar-se e seguir em frente com a vida. Libertar-se das amarras que a prendiam àquele acontecimento e a impediam de trabalhar, de sair de casa, de viver.
O marido sempre fora um homem depressivo e com baixa autoestima, principalmente depois de descobrir que era infértil e que nunca a poderia engravidar. Fedra tinha tido dificuldade em esconder a deceção, quando foram juntos ao médico saber o resultado dos exames. A semana seguinte fora difícil. O sonho de uma vida caíra por terra e o marido teve, nessa altura, que a acarinhar mais, desfazendo-se em desculpas constantes. Chegou a sugerir-lhe o divórcio, para que ela pudesse encontrar outra pessoa e constituir a grande família que idealizara, desde criança. Não era uma decisão fácil, ela amava-o e não queria outra pessoa.
O tempo foi passando e foi surgindo uma brecha. A comunicação passou a ser mais superficial e a dor que os dois sentiam foi varrida para baixo do tapete. Leonard reconhecia o peso da responsabilidade e foi-se afundando em medicação antidepressiva. O trabalho foi sendo feito de maneira automatizada e cada vez mais desleixada; quando houve uma reestruturação na empresa, ele foi um dos convidados a sair. Deprimido, em casa, achando-se cada vez menos válido, menos prestável, menos homem, foi criando uma bolha de angústia, cada dia mais espessa. Fedra, nessa época, decidiu adotar um gatinho – o Thunder – todo preto, com um raio branco pintado entre os olhos, veloz como um relâmpago. Os dois passavam a maior parte do tempo em casa, enquanto Fedra ia trabalhar. No início, parecia que a alegria e os risos tinham voltado com as brincadeiras do felino, mas, assim que o gato se tornou mais velho e pachorrento, a casa voltou a afundar-se num impenetrável silêncio.
A partir de determinada altura, Leonard começou a desenvolver uma obsessão por armas e várias formas de se morrer. Passava muito tempo em frente ao computador e lia livros, que Fedra considerava macabros. Mudaram de psicólogo e psiquiatra, mas os resultados positivos não chegavam. Um dia, ele mostrou-lhe um revólver. Tinha-o comprado com a desculpa de os manter seguros. Fedra desconfiou, demonstrou-lhe o seu desagrado, mas pouco mais. Não o obrigou a desfazer-se da arma. Nessa altura, falavam ainda menos e, apesar de ainda dormirem juntos, não se tocavam.
Um dia, ao chegar a casa, deu com ele morto na despensa. Dera um tiro ao gato e a seguir na sua cabeça. Foi horrível. Gritou, chorou e aquela imagem, envolta em sangue, nunca mais a abandonou. Passou a persegui-la, de noite e de dia. Começou a ter acompanhamento psicológico e depois psiquiátrico. Principiou a beber álcool, diariamente, e a ter alucinações. Deixou de respeitar a dose de comprimidos prescrita e aumentou o consumo de bebidas alcoólicas, cada vez mais fortes. Sem essa mistura, não conseguia dormir. Sentia-se culpada pela morte do marido. Tinha permitido essa infelicidade. Achava que podia ter-lhe dado mais atenção e evitado, se não tivesse ficado tão fria. Desistira do casamento e ele desistira de viver.
Passados três meses de internamento, teve alta hospitalar.
Sentia-se bem, estava um lindo dia de primavera e já havia decidido mudar de casa. Tinha-a colocado à venda. Era tempo de mudança, de sair e de viajar. Iniciar uma nova vida. Iria manter alguma medicação e consultas de vigilância.
Já dentro do carro, com tudo arrumado, viu o filho da viúva à janela. A placa que anunciava a venda já havia sido retirada. Ele espreitava quieto; parecia aguardar a chegada de alguém, mas podia ser impressão dela.
Fedra arrancou e na estrada cruzou-se com um carro que lhe pareceu familiar. Foi seguindo, lentamente, enquanto o observava pelo espelho retrovisor. O veículo estacionou em frente à sua casa e um homem de gabardine pérola saiu, atravessou a estrada e entrou no prédio da viúva. Para seu espanto, o sujeito era o Dr. Jones!
FIM
Livro à venda nos locais habituais.
olá Sara! Parabéns ! Adorei o teu conto, tão realista, quanto possível !
Espero que nunca pares de fazer o que gostas e que ser mãe te traga sempre lindas alegrias. Parabéns grande escritora❣️
Ana Mendes
Muito obrigada. Fico feliz. Beijinho